Perdi um tio na semana passada. Um tio com quem tive pouco contato. Morávamos em cidades diferentes e os encontros quase sempre aconteciam nos feriados, natais e afins. Lembro-me dele como uma pessoa generosa, solícita, alegre. Nas festas, ele sugeria aumentar o som.
Ficou viúvo jovem, mas não se deixou abater: teve novas namoradas, se reergueu e seguiu o baile — literalmente. A notícia de sua partida não foi uma surpresa. Tratava-se de uma doença incurável, que se arrastou por meses. Uma angústia parcelada a conta-gotas. Daí o dia chegou.
É o segundo tio que perco em menos de dois anos. Em julho de 2023, vivi outra despedida. Daquela vez, um tio com quem tive mais proximidade e que, ao longo dos meus 44 anos, tornou-se um amigo e confidente. Foi um final também de agonia: uma doença pulmonar crônica, que dizem ser a pior forma de morrer. O ar não passa, você está consciente e o resultado são inúmeras crises de pânico. Ao seu lado, aquela gente bem intencionada tenta te acalmar, dizendo, como se fosse fácil: "respire fundo".
Lido mal com despedidas. É um problema que eu tenho. Já deixei emprego e nem fui buscar as minhas coisas. Não gosto de perder. Quando se perde um tio, vai embora também uma parte da nossa história. Essas pessoas – os tios, tias, avós, os velhos – são guardiãs das memórias que pensamos ser apenas nossas.
Elas lembram de quando você era criança, daquele tombo monumental de bicicleta, do seu febrão com diarreia que estragou a viagem de todo mundo, te conhecem antes de você se tornar quem se tornou. Meus dois tios achavam bonitinho que eu escrevia bem.
Tios podem contar sobre o dia que você nasceu. Eles também sabem sobre como seus pais se conheceram. Se você tiver sorte e futucar, poderá convencê-los a te contar algum segredo antigo da família. Toda família tem segredos.
Viver essas mortes me fez colocar as coisas em perspectiva: hoje a tia sou eu. E estou envelhecendo. Minhas sobrinhas têm 11 e 10 anos. Provavelmente a essa altura já formaram alguma opinião a meu respeito. Lembro do dia que elas nasceram, da queda do patinete e posso contar sobre como foi a festa de casamento dos pais delas.
Ao mesmo tempo que a passagem do tempo é assustadora, ela também exerce seu fascínio. Por um lado muita coisa já passou, os velhos estão morrendo. Por outro, há vida à beça esperando. Puxar essa autoria sobre quem somos, viver com intenção, nem sempre é fácil. Em meio a essa rotina louca, mundana e pragmática – com perspectiva de apocalipse climático e arremesso de cadeira no colega – você pensa nessas coisas? Eu penso. Todo dia.
Mariana Mello é jornalista, estudiosa de Gerontologia (PUC-SP e Einstein) e idealizadora do Maturidades. Criou e dirige também a Alma Content, estúdio de produção de conteúdo e projetos para marcas com ênfase no tema do envelhecimento.
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Que texto bonito, os tios merecem toda uma literatura. Você me inspirou a pensar e talvez escrever sobre o assunto. A passagem do tempo faz parte dos meus pensamentos quase o tempo todo e ela pode ser vista sob o ponto de vista de um monte de gente.